sexta-feira, 27 de março de 2020

Covid-19 e os cultos religiosos (Sobre a laicidade do Estado)

Texto: Covid-19 e os cultos religiosos (Sobre a laicidade do Estado)

Autor: Flavio Fontenelle Loque (flaviofonteloque@gmail.com)


John Locke, tido por muitos como o pai do liberalismo, discute a chamada separação entre Estado e Igreja na sua célebre “Carta sobre a Tolerância”. A certa altura, ele propõe um exemplo. Trata-se da história de um país que passa por uma carestia de alimentos e cujo Estado então decide proibir a imolação de animais em cultos religiosos. Pode o Estado tomar essa decisão? Ela não feriria a separação entre Estado e Igreja? A resposta de Locke é simples: o Estado pode sim instituir a proibição porque o decreto não tem como objetivo perseguir as igrejas, mas preservar a vida dos cidadãos. Por uma situação análoga passa o Brasil agora. Se o objetivo das medidas de restrição da circulação é evitar aglomerações, por que permitir que os cultos continuem acontecendo normalmente? Essas medidas restritivas não questionam o valor ou a importância da fé, o que deturparia a laicidade do Estado. Elas não têm natureza religiosa, mas política ou civil: a finalidade é pura e simplesmente a preservação da vida, bem maior. Claro que é possível pensar em “acomodações razoáveis”: as igrejas podem permanecer abertas para atendimentos individuais dos mais aflitos, por exemplo. Insistir na realização de grandes cultos, porém, é um erro grave (talvez mesmo um crime) que leva a desconfiar que os pastores estão mais interessados no velocino do que na saúde das ovelhas.

Restringir a circulação de pessoas é o que hoje se recomenda como meio de lidar com a pandemia de coronavírus. Acontece, no entanto, que é impossível parar a sociedade por completo: algumas atividades precisam ser mantidas, notadamente aquelas relacionadas à saúde, ao abastecimento e à segurança. São os chamados serviços essenciais. E os cultos religiosos? Seriam eles serviços essenciais? Há quem defenda que as igrejas permaneçam abertas em meio à pandemia alegando que a liberdade de culto é um direito. Esse é um argumento pífio e a objeção mais básica a ele consiste em notar que o mero fato de algo ser um direito não implica que seja essencial. Se fosse assim, a própria medida de restrição da circulação não poderia ser tomada, pois se choca com o direito de ir e vir. Contudo, para abordar de maneira mais ampla a questão da abertura dos cultos religiosos durante a pandemia de coronavírus, convém esclarecer a própria noção de direito à liberdade de culto.


O direito à liberdade de culto é uma conquista da Modernidade. Nos séculos XVI e XVII, em boa parte dos países europeus ocidentais, essa liberdade não existia. Acreditava-se que uma das tarefas do Estado era cuidar da salvação das almas e, por isso, a religião oficial (supostamente verdadeira) era imposta a todos os cidadãos. O que acontecia com quem não a professava? A resposta aqui varia, pois depende do período específico e do país em jogo, mas, em geral, pode-se dizer que os dissidentes estavam sujeitos a punições que iam de multas ao exílio e à morte. No final do século XVII, porém, mas em especial nos séculos XVIII e XIX, a concepção que se tinha acerca do papel do Estado se alterou: passou-se a considerar que entre suas funções não estava a de cuidar da salvação das almas por meio da imposição da religião oficial. A responsabilidade pela salvação era agora vista como pertencendo exclusivamente aos indivíduos e às igrejas a que eles se associam.

No caso do Brasil, a transição do Estado Confessional para o Laico se deu na virada do Império para a República. Em grandes linhas, o país abandonou um regime em que havia restrições ao culto de qualquer religião que não fosse a Católica Apostólica Romana (cf. Constituição de 1824, art. 5) para outro em que se assegurou legalmente a liberdade de culto (cf. Constituição de 1891, art. 72 §3). Cerca de cem anos mais tarde, a Constituição de 1988 ratificou a liberdade de crença e culto (cf. art. 5, VI) e é esse direito que parece sustentar o argumento de que os cultos são serviços essenciais e de que as igrejas devem então estar autorizadas a permanecer abertas em meio à pandemia do coronavírus. Os cultos religiosos, entretanto, podem realmente ser classificados como um serviço essencial?

A resposta é negativa. A julgar pelo breve panorama histórico traçado há pouco, não é difícil perceber que a liberdade de crença e culto tem o objetivo de assegurar que todo cidadão tenha o direito de escolher por si mesmo a sua própria religião sem se tornar passível de sanções por sua adesão religiosa. Hoje, no Brasil, mesmo com a medida de restrição da circulação, esse direito fundamental encontra-se plenamente resguardado. Como se vê, a defesa da autorização de cultos em meio à pandemia não se sustenta: não há razões legais para tanto. Mas temos todos olhos para ver?




















Na imagem, uma sátira intitulada "meios seguros e honestos para levar os heréticos à fé católica", datada do final do XVII, que serve como exemplo emblemático do que é não ter liberdade de culto.

LOQUE, Flavio Fontenelle. Covid-19 e os cultos religiosos (sobre a laicidade do Estado). 26 de Março de 2020. Facebook: usuário Facebook. Disponível em: Acesso em 27 de Março de 2020.

https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/03/19/justica-nega-pedido-feito-pelo-mprj-e-mantem-cultos-de-silas-malafaia-em-meio-a-pandemia.ghtml?fbclid=IwAR00BnlYUWrIWm--XKNv0PKT5GzF4BWMKDNICAwc9noaqzd5N52-t9qp7Ac

https://brasil.elpais.com/brasil/2020-03-20/igrejas-desafiam-recomendacao-de-suspender-missas-e-cultos-diante-da-pandemia-do-coronavirus.html?fbclid=IwAR3PXaHsKWdogGoDUf6kZonWEY4J2gVfSVnzajyKDMyEZSyXkLKkmFkPBMc#?sma=newsletter_brasil_diaria20200320

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